Jericoacoara
ceará travessia

A Maior Remada de Todos os Tempos

Recorde pessoal de distância no SUP num único dia
Entrando no mar de Jericoacoara com minha prancha inflável

Conheci Jericoacoara no ano 2000. Fui contratado para fazer as fotos de uma matéria sobre o impacto da chegada da rede elétrica na vida dos moradores. Aproveitamos para visitar povoados vizinhos, como Tatajuba, que ainda não tinha distribuição de energia. Lá, havia um pequeno quadrado de alvenaria, no meio da praça central, como um altar a céu aberto. Era onde ficava a TV do vilarejo. E, dos bancos de madeira, alinhados como a nave de uma igreja, os moradores de Tatajuba sentavam para assistir seus programas preferidos, via satélite. Aquela era a única TV num raio de muitos quilômetros.

Pôr do Sol em Jericoacoara

A região mudou muito e hoje tem estrutura completa. O que era um destino apenas para turistas aventureiros, virou um lugar acessível a todo tipo de viajante. Jericoacoara tem até Lojas Americanas e aeroporto próprio, que recebe voos diretos e diários de algumas capitais brasileiras. Tem muita gente que reclama, dizendo que a vila não tem o charme de outrora. E reconheço que realmente está diferente (até a Duna do Pôr do Sol diminuiu de tamanho), mas não dá para negar os benefícios que essa estrutura trouxe à população local. Além disso, regras rígidas de controle foram estabelecidas para que a natureza não sofresse tanto impacto. O resultado é que Jericoacoara continua linda e preservada.

Duna em Jericoacora, Ceará

No ano de 2021 voltei para Jeri também a trabalho, para fotografar a campanha da Gaya, uma marca de roupas para esportes no mar (inclusive para Stand Up Paddle). E, como sempre faço em minhas viagens, além do equipamento fotográfico, levei a prancha inflável de SUP. Entre uma sessão de fotos e outra, consegui dois momentos para remar. No primeiro, fiz uma tentativa de travessia que deu errado e abortei faltando menos da metade do caminho. No segundo, bati meu recorde de distância num único dia, remando 39,15km (5 km a mais do que meu recorde anterior, saindo da Ilha Vitória – em Ilhabela ­– e chegando na Praia Vermelha do Sul – em Ubatuba).

A Travessia que Deu Errado

A chance de dar certo realmente não era muito grande. Sabia disso antes mesmo de começar. A ideia era sair da Praia do Preá, contornar a península de Jeri e chegar depois da Duna do Pôr do Sol. Uma distância de 16 km que, em condições normais, faria em duas horas e meia, numa boa. O problema foi ter começado a remar muito tarde, já depois das 16h. O sol logo ia se pôr e não tinha nada para iluminar o caminho. Além disso, o mar também não ajudava. A Praia do Preá não é fácil. Quem veleja de kite costuma dizer que “quem aprende kite no Preá, veleja em qualquer lugar do mundo”. O vento é fortíssimo e as ondas vêm do oceano aberto sem passar por nenhuma barreira. O mar parece um turbilhão.

Kite na Praia do Preá, próxima à Jericoacoara

Demorei pra encontrar o ponto de equilíbrio na prancha. Tentei ficar de pé, mas levantava e logo caía na água. Resolvi, então, remar ajoelhado para entender o balanço aos poucos. Fui assim por uns dois quilômetros até que, finalmente, consegui me equilibrar na prancha. O vento vinha meio de trás, meio de lado – e as ondas chegavam laterais, quebrando sem aviso e me empurrando para a areia da praia. Forcei o remo do lado esquerdo, para me afastar da costa, mas as forças que me empurravam para o outro lado eram muito mais fortes que eu. Fiquei nessa disputa, tentando abrir para a direita enquanto era jogado para a esquerda por alguns quilômetros.

Preparando para entrar no mar do Preá

Avancei devagar, caindo muitas vezes na água. Quando me dei conta, o Sol já tinha se escondido atrás da duna e a escuridão se estendeu pela paisagem. Queria muito terminar a remada como havia planejado, mas seria perigoso. Ainda tinha que virar a ponta de Jeri, com seus recifes afiados. E se a prancha batesse em um? E se eu caísse sobre uma pedra? Tudo isso no escuro total, numa região que não conheço bem. Então fiz o que era mais prudente e abortei a missão. Segui para praia e busquei resgate.

Minutos antes do sol se pôr no Ceará
A Travessia que Deu Certo

Acompanhando a previsão do tempo, vi que o melhor horário do vento seria o pior horário do sol: bem no meio do dia. Mas, entre sentir calor ou pagar vento contra, não tenho dúvidas: vou sempre preferir o vento mais favorável. Por isso, comecei a remada às 8:57, já com o sol alto, no céu sem nuvens.

A caminho do mar para a travessia de Jeri a Camocim

A maré estava praticamente no seu ponto mais baixo, deixando a praia de Jeri maior do que de costume. Atravessei a longa faixa de areia, levando a prancha até o mar. Com água nas canelas, preparei o equipamento. Água, comida e protetor solar no saco estanque, GoPro no remo, camiseta de manga cumprida no corpo e boné na cabeça.

Maré baixa em Jericoacoara

A quilha ainda raspava no leito do mar quando dei as primeiras remadas. Me afastei com facilidade. Apontei a proa para a península mais proeminente e percebi que estava super alinhado com o vento. Ele vinha de trás, me ajudando, me empurrando para frente. Pelo relógio com GPS, vi minha velocidade média subir, num ótimo ritmo. Tudo seguindo como previsto. Mas não adiantava me animar muito. Na noite anterior, tinha consultado pela última vez a previsão e sabia que era só passar aquela primeira península que as condições iam piorar.

Dito e feito, passando a Ponta do Guriú, a linha da costa deu uma guinada para o norte e o vento também girou um pouco. Agora, a força do ar me empurrava para a praia e não mais para frente. Exatamente como tinha sido na travessia que abortei, alguns dias antes.

Vista aérea de um pequeno pedaço da travessia de SUP

Tentava me afastar da areia, mas o vento me levava de volta. Perto da praia, as ondas quebravam e era bem mais difícil de me equilibrar. Então ajoelhava na prancha e remava com toda força, apenas do lado esquerdo. De vez em quando uma onda maior batia com tudo na lateral do SUP, me girando de volta para a praia, ou me derrubando na água, mesmo ajoelhado. Era uma luta sem fim, que me lembrou a briga do pescador com o peixe gigante, no livro do Hemingway (O Velho e o Mar).

Bolhas apareceram nas palmas de minhas mãos quase que instantaneamente. Cada remada era uma pontada de dor. Queria descansar remando do outro lado, mas não dava. O mar não deixava. Além disso, o sol também me castigava. Tinha que molhar com frequência minha blusa e meu boné, para amenizar a sensação de calor. Percebi que estava ficando desidratado e precisava ingerir mais água. Mas, cada vez que parava de remar, perdia toda a distância da praia que tinha conseguido conquistar a duras penas.

Fata Morgana – A Miragem

Foi então que vi, pela primeira vez na minha vida, um acontecimento do qual só tinha ouvido falar: a Fata Morgana. Este fenômeno, já descrito cientificamente e muitas vezes fotografado, é uma miragem que acontece apenas no mar, causada por uma pequena inversão térmica. No meu caso, via a península distante, na linha do horizonte, como se estivesse elevada acima do mar. Uma coisa maluca, que se não fosse o conhecimento prévio, duvidaria da minha sanidade mental.

Segui aos trancos e barrancos, passando por Guriú, Tatajuba, Imburanas… parando em alguns momentos para descansar, comer e me hidratar. Durante o trajeto, tomei exatos 4,5l de água, comi bolachas e castanhas de caju. Os últimos metros, já chegando em Camocim, foram mais alinhados com o vento e me deram uma energia a mais. A cidade fica às margens do Rio Coreaú e, acreditem ou não, torci para que meu resgate de carro estivesse bem para dentro do rio, para que pudesse remar mais alguns quilômetros. Fiquei triste quando avistei o motorista movendo os braços, acenando, me esperando na entrada do rio.

Me hidratando no caminho para Camocim

O motorista terminava seu almoço num quiosque de praia com teto de palha e aproveitei para me alongar numa das mesas de madeira, ao som da “Pisadinha”. Depois deitei numa das redes e refleti sobre o que tinha acabado de viver. Estava cansado, mas extremamente feliz. Que sensação maravilhosa a de conhecer seus limites, testá-los e superá-los. Essa distância pode ser impossível para algumas pessoas ou desprezível para outras. Sempre há quem tenha feito aventuras mais ou menos grandiosas. O importante era o tamanho que ela tinha para mim. E, para mim, ela foi imensa, foi difícil, foi dura e foi… deliciosa. Um prazer difícil de descrever. Só sei quero fazer de novo. Quero ir mais longe. Quero vibrar como vibrei naquela rede em Camocim e como vibro toda vez que lembro da aventura que vivi. Quero vibrar como vibro agora escrevendo esse texto. Quero continuar remando, sempre.

Bar onde terminei a travessia de SUP
DADOS DA TRAVESSIA DE SUP NO CEARÁ

Distância = 39,15 km

Tempo = 5 horas e 36 minutos

*esse é apenas o tempo de remada

Cidade = Jericoacoara, CE

Mapa da travessia de SUP no Ceará

Texto e fotos: Daniel Aratangy

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