Uma das minhas lembranças mais antigas é de velejar com meu pai em Ubatuba. Ele tinha um dingue, um ótimo barco à vela, pouco maior que minha prancha de SUP. Apesar de ser pequeno, levávamos a família inteira nele. Meu pai, minha mãe, eu e meus três irmãos. Seis pessoas espremidas em um barco projetado para levar apenas duas. É claro que o veleiro mal saía do lugar. Ficávamos mais à deriva do que navegando de fato. Mas ninguém tinha pressa. Curtíamos mais o caminho do que o lugar de chegada.
Tinha uma praia bem pequena, especial para nós, que visitávamos sempre que o vento deixava. Meu pai a chamava de Praia do Tesouro. Dizia que um pirata havia escondido um tesouro ali. Eu, criança, acreditava em tudo.
O tempo passou e meu pai conseguiu comprar um veleiro maior. Agora corríamos regatas num barco com cabine, vela mestra, genoa e balão. Só precisávamos ficar espremidos quando o vento forte deitava o veleiro e sentávamos todos com os pés pendurados para fora do casco, fazendo o contrapeso. Enfrentamos muitas tempestades com escotas soltas, chicoteando o ar. Perdemos manicacas no fundo do oceano. Rasgamos balões. Visitamos ilhas desconhecidas. Vimos arraias, golfinhos e baleias. Tiramos sacos e mais sacos de lixo de praias desertas. Dormimos e fizemos refeições a bordo. Vivemos grades aventuras, mas eu, adolescente, não dava muita bola.
É claro que aconteciam discussões nos momentos mais tensos. Afinal, os filhos foram educados para terem espírito crítico. Na escola e em casa, éramos estimulados a questionar tudo, ver sempre o outro lado e tentar entender as motivações por trás de cada informação recebida. A hierarquia, tão reforçada nos barcos em geral, não fazia sentido para nós. A cada comando do capitão, vinha uma série de questionamentos e opiniões. Na nossa micro democracia, batíamos cabeça, mas avançávamos como família.
Passei um longo tempo sem navegar com meu pai. Suas velejadas me pareciam longas demais, quase nunca tinha vento, ficávamos horas apenas balançado de bombordo a boreste. Quando chegávamos na poita, tínhamos um ritual rigoroso de arrumação do barco. Isso me entediava e simplesmente parei de ir, embora visse ele chegando das velejadas sempre feliz da vida. Eram raras as vezes que ele lembrava de levar água, comida e protetor solar. Voltava maltrapilho, com fome, todo sujo e descabelado, com cortes nas pernas e um sorriso de orelha a orelha. Com sua paixão pelo mar, acabou conhecendo outros velejadores e foi com eles para Antártica, atravessando à vela o mar mais perigoso do mundo, o Estreito de Drake. Eu, no começo da vida adulta, perdi a chance de curtir esses momentos com ele.
Quando comecei a remar de stand up paddle, logo me interessei pelas travessias. Queria usar minha prancha como usávamos o veleiro. Queria percorrer grandes distâncias sem me preocupar muito onde chegar. A ideia sempre foi curtir o caminho. Remava no mar, como um trilheiro caminha na montanha. Aos poucos, percebi que mesmo, em alguns momentos, ficando mais distante de meu pai, seu jeito de ser sempre me influenciou. Percebia que cada atitude e cada pensamento que eu tinha era fruto da convivência que tive com ele. Então, adulto, descobri que ele estava dentro de mim.
Um dia, veio a trágica notícia: ele fora diagnosticado com câncer de medula óssea. A doença foi um choque na família e, lentamente, consumiu a força do capitão. Me refiro à força física mesmo, porque ele não se deixou abalar e continuou seus projetos na mesma intensidade. Nos doze anos que viveu com o câncer, fez muitas viagens, escreveu (mais) um livro, estreou um canal de poadcast e… trocou de barco. Comprou um veleiro catamarã e com ele correu a ReFen (a famosa regata de Recife a Fernando de Noronha). Voltou para Ubatuba velejando, parando apenas por uma semana no Arquipélago de Abrolhos, onde eu, minha mãe e uma irmã fomos encontrá-lo. Essa foi a última viagem que fiz no barco dele.
Ainda velejamos muitas vezes em Ubatuba antes dele partir. Meus filhos (gêmeos) nasceram e logo foram conhecer o barco do vovô. Não tinham nem três meses de vida quando saíram do Saco da Ribeira para uma volta na Ilha Anchieta. Já com uns três anos de idade, pulavam do alto do convés para o mar, subiam pela escada de popa e pulavam de novo, numa brincadeira infinita. Cada passeio era uma festa. Quando levantávamos âncora, meu pai colocava as crianças no colo, deixando eles cuidarem da roda do leme, enquanto ensinava sobre ventos e correntes. Eu, pai de dois, já percebia a falta que ele ia fazer.
Agora que ele se foi, penso – com dor no peito – nas aventuras que deixei de fazer com meu pai e, principalmente, nas que meus filhos nunca farão com o avô. Me apego às lembranças dos momentos que passamos juntos. Lembro da única viagem que fizemos só nós dois. Estávamos visitando minha irmã em Toronto e aproveitei a viagem para fazer uma travessia a remo. Resolvi ir do Canadá aos EUA de SUP e pedi a meu pai que me acompanhasse de carro, fazendo o apoio. Ele fez a função com maestria e imenso prazer. Dividimos o quarto no bed and breakfast, saímos a noite para jantar, dividimos uma garrafa de vinho, ouvimos música no rádio do carro alugado. Coisas pequenas com enorme significado para mim.
Resolvemos cremar seu corpo para lançar as cinzas no mar de Ubatuba. Neste último verão, reunimos a família toda no barco dele. Fomos velejando até a Ilha Anchieta com quinze pessoas a bordo: minha mãe com seus quatro filhos, dois genros e oito netos. Golfinhos apareceram para nos saudar. Baixamos âncora numa pequena baía entre as praias Sul e Palmas. Lançamos as cinzas da proa, a barlavento, e uma parte delas voou para dentro do barco. Pensei com certa satisfação que, se meu pai estivesse presente, teria dito para lançarmos da popa, a sotavento, claro.
É mais fácil usar metáforas para falar sobre a morte para crianças pequenas. Por isso, acabei dizendo para meus filhos que o vovô ia virar peixinho e que poderíamos visitá-lo sempre que quiséssemos, ali mesmo. Aproveitei e marquei o ponto exato com o GPS, no Google Maps. Agora vejo um coração vermelho, cercado de água salgada, toda vez que dou zoom nas proximidades da Ilha Anchieta.
No mês passado fui remando da Praia da Enseada até o local em que lançamos as cinzas. Era um dia de sol com mar especialmente claro. No caminho vi alguns peixes, principalmente paulistinhas e uma ou outra tartaruga. Na passagem do canal, entre o continente e a ilha, vi um casal de cações gigantes. Mais para frente, um peixe-voador. Depois, um peixe-espada. Quando cheguei na baía marcada no mapa, aconteceu algo surpreendente. Vi cardumes e mais cardumes de peixes. Alguns com centenas deles. Eram de cores e tamanhos variados. Nunca, em todos esses anos de travessias, tinha visto tantos peixes juntos em Ubatuba. Satisfeito, pensei que se fosse verdade o que havia falado para meus filhos, meu pai tinha muita companhia estava no melhor lugar possível.
Texto e fotos: Daniel Aratangy
E “filho de peixe, peixinho é!”
Linda história de vida, parabéns por reconhecer e valorizar os pequenos detalhes, mesmo só “hoje” e não na “aborrescência”. O que te tornou assim foi essa criação que ele te deu, foi a liberdade em poder ser crítico, poder notar e expressar suas opiniões da forma como você absorve a vida. É uma ligação profunda de pai e filho com o mar, e hoje essa conexão pelos seus caminhos é capaz de tornar vívido novamente todas essas lembranças, fantásticas! É encantadora a sua paixão pelo mar!
Thassia, que mensagem linda! Obrigado por deixar seu comentário. Hoje vejo mesmo a importância dos pequenos detalhes. Esses são os mais significativos.
Uma abraço
Que história linda e encantadora, as lições de vida que herdamos são o alicerce para vencermos as batalhas durante nossa passagem pela Terra. A paixão pelo mar, pelo SUP manterá este laço forte entre vocês, cada um em seu pano espiritual. Abraços meu amigo. Edson Conti (Curiosidades de Ubatuba).
Obrigado por deixar sua impressão aqui, amigo!
E que você continue ajudando as pessoas a construírem histórias como essa através do seu site e insta sobre Ubatuba.
Abração